" Tinha um modo particular de morder o lábio inferior. Era meticulosamente prática, mergulhada em sequências de coisas a fazer. Lavar as mãos, pente no cabelo, arrumar a mesa, comprar os pães e enxugar todo o suor no antebraço direito. Nada, ou quase, fazia com que ela ultrapassasse a grade de sua rotina. De volta da padaria, numa de suas sequências programadas, sacou fora uma unha do pé direito, num tropeço que fez esguichar o sangue guardado e com caminhos também programados. Em cima do calçamento mal organizado, o vermelho escorria e sua dor era indiferente, se não fosse por uma música, enfiando idéias naquela cabeça que há muito não pensava de outro modo.
A unha continuava suspensa. O chinelo tornara-se preguento e cheio de hemácias. Uma das mãos soltou a sacola que levava os pães e deslizou no ar como quem dança. Era aquela que nunca mais tinha surgido, de volta, resgatada por um sonoridade que deixou-a tonta e com sensações rídiculas. Parou para ver o dedo. Quis seguir sua direção antes planejada. O som crescia em decibéis alarmantes. Sua cabeça pendeu para um lado, os quadris para o outro. Dentro da carne, uma sensação de tremor e prazer. Era aquele som que fazia seu corpo ficar languidamente leve, despachando sensações e pequenos sorrisos, banhados por suor e sangue. O dedo se expremia, empurrando todo aquele vermelho para fora. Sentiu-se fraca, como perdendo o senso. Estava voltando da padaria, recordou num susto. Viu os pães no chão, atrás dela. Quis voltar e pegá-los. Seria humilhante, ainda que ninguém a visse. Nova topada e a unha parecia querer voltar pro lugar. Desligaram a música. E, naquele dia, ninguém comeu pão, quebrando sua rotina e deixando-a extremamente contrariada. Tentou novas topadas, pré-programadas, mas aquela música, nunca mais tocou."
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